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  • Foto do escritorPsicóloga Luciana Salvador

Lembranças que são tormentos: como se desenvolvem os traumas


Você constantemente se recorda de alguma situação do seu passado com grande desconforto? Essas situações têm repercussões em sua vida atual, lhe impedindo de realizar algumas coisas ou de sentir-se bem?

Apesar de geralmente utilizarmos a palavra trauma para nos referirmos a situações graves, pessoas que lembram muito de situações de seu passado com incômodo podem apresentar traumas. Pessoas com traumas lembram ou sonham com muita recorrência de situações intensas que vivenciaram. Essas lembranças podem se referir a traumas intensos (situações de abuso físico, verbal, sexual; violência, mortes, assaltos) ou a pequenos traumas que, mesmo que possam parecer para os outros pouco significativos, para essas pessoas podem se tornar um tormento e impedi-las de ter uma vida plena no presente.

Para explicar a teoria sobre o trauma psicológico, vou utilizar durante esse texto o exemplo fictício de uma pessoa que apresenta uma história de um pequeno trauma, que lhe causa um prejuízo significativo no seu momento de vida atual.

João é um homem hoje adulto que se recorda a todo o momento de um dia quando tinha 07 anos de idade, em que “travou” em uma apresentação oral na escola. Sempre que lembra disso, sente enorme desconforto no corpo (sudorese, taquicardia) e sente-se mal em relação a si mesmo. Atualmente, apresenta fobia para falar em público.

Todos os dias nós temos uma série de experiências (boas, ruins ou neutras) nas nossas vidas e o nosso cérebro precisa reprocessar tudo isso diariamente. Por isso o sono e o sonho tem uma função tão importante já que o sono REM (momento do sono em que há um movimento rápido dos olhos) faz o reprocessamento de todas essas experiências que ocorrem durante o nosso dia. Contudo, quando ocorre uma experiência que foi muito intensa emocionalmente ou que, por algum motivo, não conseguimos elaborar adequadamente, esse reprocessamento pode ficar bloqueado em relação àquela experiência vivida. É como se as outras experiências fossem reprocessadas normalmente, mas “aquela” teria ficado “encapsulada” no cérebro.

Após os 7 anos, João teve uma série de experiências boas e difíceis em sua vida, chegando a incluir morte de pessoas queridas e acidentes. Contudo, quando lembra dessas últimas situações dolorosas, às vezes sente tristeza mas não o incômodo intenso que a lembrança da escola aos 07 anos lhe gera. É como se as outras situações difíceis tivessem sido reprocessadas e elaboradas de alguma forma em seu cérebro. Contudo, a da “trava” na escola não foi.

É comum as pessoas sentirem até raiva de si mesmas por se incomodarem ou lembrarem sempre de coisas que consideram tão “pequenas”. Contudo, é importante saber que a pessoa que apresenta um trauma não consegue simplesmente “não pensar” e, por isso, muitas vezes, técnicas focadas em estratégias para mudar o pensamento podem não funcionar para alterar a recorrência e a intensidade dessas lembranças.

Hoje João é um importante empresário e pensa que é “bobagem” sentir-se assim. Sabe racionalmente que possui todas as habilidades necessárias para conseguir falar em público e que todos valorizam seu conhecimento e seu trabalho. Sabe que esse medo e pensamento é irracional. Contudo, quando entra em uma apresentação importante, “trava” e tem as mesmas sensações que teve na situação dos 7 anos de idade. É como se, nesse momento, o cérebro conectasse com aquela experiência traumática e não conseguisse agir diferente. É uma reação instintiva.

Uma situação se torna traumática porque, no momento em que ocorreu, teve uma intensidade de sentimento que a pessoa não conseguiu elaborar adequadamente. Por isso é muito comum a maior parte das experiências traumáticas terem acontecido na nossa infância, momento em que a pessoa tem menos recursos emocionais para lidar com situações intensas.

A neurociência tem comprovado a teoria de que situações traumáticas ficam “guardadas” em áreas específicas do cérebro que não conseguimos acessar facilmente. Recentemente a Nature Neuroscience publicou um artigo relatando pesquisa que comprova que memórias traumáticas são registradas em um processo mediado por moléculas diferentes das que codificam lembranças normais, o que faz com que só possam ser acessadas sob condições mentais similares.

A teoria da psicoterapia de EMDR (psicoterapia de dessensibilização e reprocessamento através de movimentos bilaterais) já utiliza esse modelo explicando que uma memória traumática é armazenada neurologicamente em uma rede neural separada do restante das redes de memórias integradas (o sistema “geral” de informação). Assim, acabam existindo poucas conexões associativas entre a rede neural isolada com a memória do trauma e o resto do sistema.

Portanto, apesar de nosso amigo ter um trauma considerado “pequeno”, isso afeta sua vida diariamente e lhe impede de realizar seu trabalho do jeito que gostaria. Provavelmente essa memória de ter travado em uma apresentação na escola aos 7 anos está guardada em uma “cápsula” no seu cérebro, em uma rede neural diferente das outras redes. Ele não tem medo de uma série de outras coisas (dirige, voa de avião, mata baratas) mas sente muito medo de falar em público.

As terapias de reprocessamento (EMDR e Brainspotting) através de estímulos e técnicas neurobiológicas conseguem acessar essa “cápsula” do trauma no cérebro e reprocessar o que não pôde ser reprocessado no momento que deveria ter sido. O objetivo dessas terapias é estabelecer novas vias neurais para conectar a rede neural isolada com o sistema geral de informação, de modo que os dois sistemas neurais tornem-se integrados e haja um fluxo livre de informações adaptativas entre os dois. Os estímulos fazem com que os sistemas passem a “conversar” entre si.

O autor Philip Manfield (do livro Recursos Diádicos: criando uma base para o reprocessamento do trauma) explica que é como se esse sistema em que a situação traumática fosse uma ilha neurológica que não tem conexão com o continente, que seria o resto do cérebro. E que, quando cai nessa ilha do trauma, é como se o viajante fosse jogado de volta no tempo e o mundo aparece como se a passagem do tempo nunca tivesse ocorrido. E, como a informação está em uma ilha, ela deixou de ser transformada por experiências e perspectivas adultas subsequentes.

Por isso o homem da nossa história sente as mesmas coisas no momento da reunião atual em que precisa falar do que quando tinha 7 anos, como se estivesse lá em seu passado. A perspectiva adulta para ele (o continente) não está disponível para ele acessar no momento de estresse.

Durante o reprocessamento na psicoterapia, as ligações neuronais entre essa ilha e o continente são estabelecidas, como se os estímulos e protocolos utilizados abrissem uma porta para entrar nessa “cápsula” do trauma. A partir do tratamento, o cliente pode realmente sair dessa ilha em seu cérebro. Por isso, depois de fazer o reprocessamento, a pessoa passa a tratar aquela experiência traumática sob novas perspectivas, sente como se fosse uma simples lembrança, não lhe gerando mais incômodo. Consequentemente, os resultados na vida atual costumam ser evidentes e rápidos e muitas vezes generalizados a outras áreas da vida que passam a melhorar também. Isso ocorre provavelmente por haver conexões neuronais entre aquele trauma e outros sintomas na sua vida. Melhorando a cápsula do trauma, outras situações tendem a se equilibrar.

É importante frisar que ter lembranças dolorosas constantemente nos impede de vivermos no presente e de aproveitarmos nossa vida plenamente. O trauma tira nossa capacidade de escolha. Portanto, libertar-se desses traumas é imprescindível para sermos livres e para conseguirmos realmente nos tornar o que queremos.


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